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O pêndulo e o gato (ordenar)

-Então, como está se sentindo com a mudança?
- Em paz.
- Paz é tudo, né, Rosilda?
-Mais ou menos...
-Ué, como assim?
-Paz demais, vamos combinar, é chato, né?
-É, o ser humano é um eterno insatisfeito mesmo.
-Não é insatisfação não, mas eu vi que barulho é uma coisa necessária.
-Necessária?
- Em termos, só quem vive absolutamente sem barulho é que percebe isso.
-tsc, tsc, vivendo e aprendendo, essa é boa!
-Na minha rua, você não escuta nada, no meu prédio, muito menos, parece que ali só tem alma penada...
-Você não queria um prédio, sem play, pequeno, sem trânsito, numa rua tranquila?
-Queria.
- Então?
- É meio contraditório. Se de um lado se você tem barulho, de outro você acaba acostumando seu ouvido, entende?
- Ãnh...
- Lá se escuta até agulha cair. Agora , se você tem muito silêncio, qualquer barulho te leva à loucura.
- Como assim?
- Por exemplo, o velho relógio de pêndulo, relíquia do meu pai que me coube na herança, tirei fora. Troquei por um digital. Imagine coisa pior do que aquele tic-tac ritmado no seu ouvido.
- É pode ser.
- E os objetos? O estalido da geladeira, o barulhinho da cafeteira, a água descendo no ralo, coisas que você nem percebia e, acredite, até as oscilações da rede elétrica você percebe.
- Isso é fácil de resolver. Liga o rádio ou a tevê.
- Trocar barulho  vivo por barulho eletrônico...
- Sei lá.  Como são as coisas, dava tudo por ter essa paz!
-Queira não, Cremilda. Barulho de gente é muito bom. Claro, civilizado, né?
- Então viver sozinha não é o paraíso...
- Diria que não é inferno também, é uma espécie de purgatório zen. Melhor. Um limbo. Parece uma condição temporária...
- Convida  amigas e amigos pra sua casa, faz um barulho de vez em quando...
- É estou pensando, mas é um paliativo. Eles têm suas casas, seus parceiros, seus filhos.
- Você disse que acaba acostumando seu ouvido com barulho, então vai acostumar a ouvir o silêncio.
-Esquisito, se cair uma panela no chão, parece uma bomba atômica, uma batida de porta pelo vento, parece uma guerra, um latido dá impressão da única coisa viva por ali. Aí o que eu faço? Telefono. Telefono pras pessoas pra conversar.
-Ih, aí é que mora o perigo...pro bolso!
- É, é um risco calculado, a gente não pode é se acostumar à solidão, né?
- Isso é relativo, eu tenho marido e dois filhos e sou a pessoa mais só do mundo!E a mais acostumada.
- Você não sabe o que está falando! Fala isso que sabe que tem eles ali todos os dias. Não quero nem pensar no silêncio da ausência.
- Eu sei do que estou falando sim.
-Menos, Cremilda. Você trocaria sua situação pela minha?
-Isso não é verossímel, vamos combinar.
-Não, mas pensa na hipótese de se colocar em meu lugar por um diazinho.
-Realmente é bem difícil se colocar no lugar de outra pessoa, concordo .
- Bom, entre perdas e ganhos, vou levando. Não se ganha sempre.
-Falando em perdas e ganhos, o que você vai fazer com o velho relógio?
-Sei lá, por que? Tá interessada?
- Pelo menos me concentro nele pra distrair das demandas..."Mãe, cadê o par da minha meia", "Crê, viu meu celular?" Quanto você quer nele?
-O que é isso, minha amiga, te dou!
- Não, não, é uma relíquia de família, afinal... tá funcionando?
- Atualmentre tá parado. Não dei corda.
-Eu dou, me abstraio...
- Está bom. É seu, leva! É lindo, é italiano. Tem um entalhe renascentista...
-Puxa, Rosilda!
-Pode buscar, na boa! Mas cuida dele com carinho, depois te passo as instruções.
- Não, muito valioso.Tenho que te dar algo em troca.
- Na-na-ni-na-ni-na-não!Nada disso, por que?
- Pra ficar justo.
- Cê boba!
-Já sei, o gato.
- Um gato?
- Um gato angorá lindo!Precisa ver, parece um lorde inglês, um gentleman! Só dá um miadinho soft de vez em quando. E além do mais, você finalmente vai ter uma coisa viva em sua casa!
-O gato dos meus sonhos é um homem, Cremilda.
-Mas enquanto o gato-homem não vem...
- Vamos combinar o seguinte: fica com o relógio, eu fico com o gato, depois a gente se dá a chance do arrependimento. Um test-drive.
- Arrependimento?
- Se de repente eu sentir falta do pêndulo e você sentir falta do gato?
-Hum...
-Hum, o que?
-  Sejamos francas, nem você quer se desfazer totalmente do gato, nem eu totalmente do pêndulo.
- É..., bem, é que o Boanerges deu um ataque e me deu prazo pra eu sumir com o gato, pior que eu me apaixonei pelo Alexandre Magno...tão distinto!
-Alexandre Magno, gato ilustre heim, tá certo, você me dá, mas ele é seu, tá? 
 -Na alegria e na tristeza.
- Combinado, você me dá o pêndulo, mas ele é seu, tá?
- ...
- Que foi?
- Mas tem uma coisinha, o gato é perecível...
- Mas substituível, enquanto o pêndulo é único.
- Acho que assim você sai perdendo...
- Não, você é que sai. Pensa no afeto investido no animalzinho.
- E você no significado de um objeto de família. 
- Não. melhor não.


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