Firulas

Cremilda hoje não está sonolenta.Senta-se fazendo muxoxos.
- Ih, já vi que o dia começou bem hoje, o que foi desta vez? Brigou com o Boa ?
- Acertou em cheio! Logo cedo.
Cremilda se ajeita.
- Não vou mais pro feriado em Poços de Caldas! Reservei hotel e tudo.
- Por que?
- Acredita que o Boanerges acordou cedinho prá me dizer simplesmente que não ia mais?- E por que ?
- Acredite se quiser. Por que tinha prometido comprar um tênis e um celular novo pro Cris! Um tênis que vale uma semana de diária de hotel, pode?
- Tsc, tsc, tsc!
-É...ele é contra consumismo, menos com os filhos. Com eles o céu é o limite.
- Você tem toda razão. Mas você podia dizer não, não podia?
- Você pensa que é fácil? É mais fácil escalar o Everest sob avalanche ! Mandei todo o sociologês que tinha direito. As criancinhas pobres do Congo, do Timor Leste, do Nordeste... Nada o sensibilizou. Nada!
- Sabe, o que eu penso disso?
- Sei. Mas lá em casa são dois contra um. Esse um sou eu, já viu, né?
- Ah não! Eu rodava a baiana.
- Minha baiana está mais do que poída de tanto rodar, minha filha!
- Tô vendo. Então, você vai fazer o que?
- O de sempre. Vídeo e pipoca. Os meninos viajam e Boanerges vai prá jogatina.E fica tudo na mais perfeita ordem!
- É, amiga, não te invejo nem um pouquinho.
- E pensar que seu sonho era casar, queria marido e filhos...vai vendo!
- Peraí, Cremilda, marido e filhos eu queria, marido, não um, desculpe, mala, como o seu.
- Mala não, pode falar, pen-te-lho!
Rosilda faz sinal que ela abaixe o tom. Olha para os lados e fala em tom baixo:
- Pentelho, Cremilda? Pentelho é palavrão, sabia ?
- Que nada, o Faustão não fala isso adoidado?
- Mas Faustão é Faustão. Mas você é uma senhora, não fica bem...
Cremilda, atingida como um raio pelo senhora, pensou um instante, mas logo revidou:
- Lembra que outro dia você falou supimpa ?
- Eu ? Ãnh. Já sei, mamãe usava muito essa palavra, é do tempo dela.
- Pentelho todo mundo entende, mas supimpa , faça-me o favor, ninguém sabe o que é.
- Arrá, peguei você! "Faça-me o favor?" Ninguém , desde o século 19, usa essa expressão.
- Ah, é? E você que outro dia também falou firulas?
Rosilda olhou para um lado e para o outro:
- Firulas, eu falei firulas? Duvido...
- Firulas, minha filha! Supimpa e firula. Dois a um prá você.
- Tá sonhando!
- Tô nada! Foi na época da reeleição. Disse, não sei porque, já sei, foi o  Fernando Henrique que falou que  estava cheio de firulas ! Me lembro perfeitamente.
Rosilda queria encerrar o assunto:
- Então, está bem, falei, não precisa ficar repetindo, pronto e não se fala mais nisso...
Cremilda tripudia, com voz em falsete no ouvido de Rosilda:
- Firulas, firulas... - Muda o tom - Firulas é do tempo das ceroulas.
Dá um tapinha na boca e se encolhe na poltrona.
Rosilda a olha com ar e tom de superioridade:
-Arrá! Ceroulas, é, Cremilda? O que é isso, heim ? É do seu tempo,é ?
Cremilda levanta dois dedos de cada mão:
- Dois a dois...! Foi de propósito,boba; só prá não ficar desempatado.