
Rosilda coloca o jornal no colo.
- Às vezes, a vida supera a ficção né?
- Por que você tá dizendo isso?
- Tô lendo aqui sobre criminalidade e lembrei do que Almerinda me contou, quando faltou na 2ª feira passada.
-O quê? De novo? Mas conta!
- Ela e uma amiga moram lá pros lados de Rio do Ouro, e precisam atravessar um trecho de estrada pra pegar um ônibus delas. De repente, apareceu um carrão preto, tipo desses de gangster de verdade, dois caras de dentro pararam e mandaram as duas entrarem.
- Coitadas! Um sequestro! E o que fizeram?
- Nada, entraram. Os caras só pediram que ficassem quietinhas. Claro, elas que não eram bestas ficaram, só tremiam como vara verde. Almerinda disse que só pensava o quê os caras podiam querer com duas domésticas, pobrinhas e já coroas , mas só pensou, claro.
- Claro!
- Aí o carro entrou pelo que parecia uma picada, tipo chão de terra - elas estavam com capuz mas perceberam - e depois de não sabem quanto tempo, parou num lugar cheia de cães.
- Ai! Que horror!
- Entraram, com medo não sabiam se dos cães ou dos bandidos.
- Páreo duro, né?
- Tiraram as duas do carro, ouviram falação de homem, devia ter mais caras armados lá e depois viram, tudo de terno.
- Hum, hum..
- O que parecia chefe tirou os capuzes, e ainda disse pra elas sorrindo: - Vocês estão perfeitas, parece que foi combinado, com esses vestidos pretos! - Almerinda se animou e disse pra ele; - ainda agorinha mesmo eu disse isso pra Amelinha, não foi, Amelinha?- Amelinha não respondeu, paralisada de pavor, assim permaneceu.
- E aí?
- E aí ele mandou ela calar a boca novamente. Conta ela que a tal casa era grande, tinha um muro altíssimo e tinha um pátio e nesse pátio nos fundos uma espécie de capela. Quando chegaram à porta da capela, o homem as parou e disse: -agora vocês vão começar a chorar.
- Coitadas!
- Pronto, elas se imaginaram assassinadas e enterradas ali mesmo, o que tinham feito afinal pra eles fazerem isso com elas?
- É, coisa sem sentido...
- Aí o cara tirou do bolso uns lenços e estendeu pra elas, e entraram na tal capela. Aí mostrou a elas um caixão, tinha um velho morto, devia ser o Al Capone deles, e falou: - O maior medo de meu pai era que ninguém chorasse a sua morte. Podem começar.
- Não pode ser verdade!
- Aí elas aproveitavam o desespero e choraram tudo que queriam e não queriam. Ele até chamou a atenção delas, não precisava também exagerar. E que ficassem de cabeça baixa o tempo todo.
- Que situação! Mas peraí, e esse velório em casa, que estranho, não tinha padre nem nada?
- Tinha um sujeito que fez lá uma reza, devia um pastor, não ousavam levantar a cabeça, mas perceberam de relance também uma mulher com um véu negro, que parecia jovem. Que nem chorava, quem chorava mesmo eram elas. De pavor.
- No filme do Al Capone, seria a amante.. E aí?
- Aí acabada a cerimônia, ele, o chefe né, filho do chefão, levou as duas a uma pequena cozinha, ali mesmo na capela, e deu-lhes água e Coca-Cola. Almerinda declinou, tinha diabetes. O homem agradeceu.
- Agradeceu?
- Agradeceu, elas ficaram pasmas, aí ele chamou o comparsa e recolocaram nelas os capuzes, ameaçando se elas dessem qualquer informação ou contassem o que havia acontecido, eles as achariam onde estivessem, até na Arábia!
- Não acredito. Hum...
- Ainda levaram as duas de volta ao lugar onde as sequestraram, e antes delas saírem do carro, o chefe botou a mão no bolso e deu cinquenta reais a cada uma.
- Ainda pagou! É muita ficção pra ser verdade!
- Não estou dizendo, às vezes a vida supera a ficção.
- Cremilda...
- Quê?
- Isso não parece desculpa-de-empregada-que-faltou-segunda-feira? Lembra que você já advertiu Almerinda pelas faltas dela às segundas?
- Também pensei nisso...
- Cê acha que, se o cara ameaçasse mesmo, ela iria te contar essa história assim tão tranquilinha , com tantos detalhes?
- Bem que a princípio eu duvidei, mas aposto mais na história do que em Almerinda ter essa imaginação toda de Patricia Highsmith¹ , não acha?
- Sei lá, minha amiga, quantos talentos não existem por aí perdidos neste mundo?
- Sei lá, minha amiga, quantos talentos não existem por aí perdidos neste mundo?
1. Patricia Higsmith
Essa história é uma versão de um "causo" do livro Por trás dos Alambrados de Sergio Gomes. Muiraquitã, 2012.
Essa história é uma versão de um "causo" do livro Por trás dos Alambrados de Sergio Gomes. Muiraquitã, 2012.
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