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17.4.12

A voz de pimenta e o passarinho lixeiro

Rosilda está desanimada.

- O que você tem, Rosi, há muito tempo não te vejo assim...
- Estou naquela conjunção astral da virada, sabe qual? Algo tem que mudar!
- Isso é periódico, comigo também acontece, mas acabo não virando nada, vamos lá, o que você quer mudar, tudo ou parcialmente?
- Primeiro de casa. O sonho do prediozinho antigo, calmo e aconchegante, poucos moradores, desabou.
- Ainda bem que foi o sonho e não o prédio, mas diga lá, por que?
- Primeiro, a sensação de que, quando você entra ou sai do prédio, todos os olhos estão em você.
- Credo, não é noia não?
- Não, já constatei. Pior, sabem de sua vida sem que você conte nada.
- Ah não. Como?
- Pegam conversa no ar, no corredor, observam suas visitas, suas saídas, se bobear até telefonemas que você recebe. E  olha, pessoa mais discreta que eu tá pra nascer.
- É mesmo. Então concluo que você está atrás de um anonimato relativo.
- Acertou, um prédio pequeno é como  uma cidade pequena. Você nunca é ignorado.
- Boa comparação.
- E tem mais, tem uma vizinha que, pelo amor de Deus, tem uma voz ardida, insuportável!
- Voz ardida?
- Como pimenta! Voz de pimenta com amargura e reclamação é dose, e não tem como eu não escutar, a janela do apartamento dela dá pro fundos do meu
- Essa coisa de voz de pimenta é copyright seu, né?
- Como assim, Cremilda? Voz tem sabor e texturas: doce, aveludada, áspera, de seda,  de taquara...
- Está bem,  você introduziu um novo sabor.
- E rascante, nunca viu? A  Cassia Eller, por exemplo, tinha uma voz rascante, como o vinho seco, já a Rita Lee, é vinho suave...
- Tem razão, mas voltando a seu problema,a  da pimenta...fecha a área.
- Vou sufocar, né? Pior que é todo dia a mal-amada maldiz a vida, os parentes, a humanidade. Ai, às vezes tenho até maus pensamentos...
- Hum Não se iluda não, gente ruim e chata não morre, mais fácil matar os outros.
- E ainda tem os passarinhos seresteiros, que nasceram pra cultivar minha insônia. Todo dia pela manhã desmancho um ninho que fazem nas hastes do ar condicionado. Dão um tempo, mas voltam.
- Ah tadinhos, deixa eles...Você acorda como Cinderela e logo vira a madrasta malvada!
- Fala sério!Tem uma baita árvore pra eles fazerem giganinhos bem em frente, acho que eles perderam a noção.
- hahaha, são passarinhos hightech! Eles só querem uma fresquinha, Rosi!
- Os pentelhos vão juntando gravetos, elásticos, pedaços de pano, algodão, sucatas. São mini catadores de lixo voadores. E juntam tudo na minha janela, pode? Sem falar dos arrulhos e cocô .
- Eles podem mesmo estar perturbados com tanta agressão à natureza. Mas você está reclamona , heim?
- Tô, e antes que eu fique igual à Voz-de-Pimenta, vou tratar de me mudar, prum prédio grande, perto da praia, e da muvuca. Muita muvuca! E o bendito anomimato!!
- Fica assim não. Sai, dá uns rolés e só volta quando estiver bem cansadinha, é tão bom, a gente chega, toma aquele banho, come e depois cai mortinha. Remédio infalível pra baixo astral: as pernas!
- Já fiz isso, e adianta? A tal vozinha é incansável, Crê.
- E que outras mudanças você quer fazer?
- Visual, não aguento mais minha cara.
- Hum, mas isso tem seus riscos, sabe né?
- Riscos e custos. Estou avaliando.
- Avalie bem.
-  ...
- Viu o que aconteceu?
- Não, o quê, quando, onde?
- Calma! Saímos de uma conversa sobre conjunção astral, uma insatisfação existencial, a voz de pimenta e o passarinho lixeiro, a plástica...
- Normal...São  as voltas que a conversa dá.
- Quantas vezes a gente fala em circulos e não percebe?
- E o que isso tem de relevante?
- Em tese, nada. Pra mim o interessante é o modo como uma simples voz de pimenta pode levar a questões mais complexas.
- Simples nada. Não é você que convive com elas!
- Rosilda, não é a voz de pimenta, não é o passarinho, não são os olhos dos vizinhos em cima de você, percebe?
- É o que, então?
- Nossa, está tão próximo que você nem vê.
- ...
- Hum?
- Ok, ok. Tá, tá.

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