Assim que Cremilda entra no ônibus, Rosilda se mexe na poltrona, ansiosa:
- Não vejo a hora de ouvir essa história de famosa- por-um-dia!
- Famosa por um dia? Vexame por um dia, isso sim. Não era assim que eu queria ficar famosa, olha aqui:
Cremilda puxa o celular da bolsa
- "Idosa passa mal e é resgatada de helicóptero"! Olha aqui Idosa!
- É o ponto de vista deles... Tá bem, mas eu quero ouvir tudinho de você!Sua versão.
- Bobagem... Tive uma falta de potássio na trilha, só isso, nem precisava dar na Internet.
- Vam´lá, desde o início! Quero sa-bo-re-ar! Eu espero você se acomodar.
-Ok. Hum... Começando. A ideia foi do Cacau. Como estávamos todos reunidos, eles vieram passar as férias conosco, cismou que precisávamos fazer um programão de família. E como nunca perdeu a mania de Greenpeace, escolheu a trilha.
- Cacau sempre ecológico...
- Ainda houve uma certa resistência...
- Sua, é claro!
- Nunca fiz uma trilha, primeira e última trilha na minha vida e, se dependesse de mim, morreria sem fazer trilha, na boa! Uma trilha miserável entre Friburgo e Teresópolis. Boanerges pegou até mapa, nem precisava, tinha um guia, aliás um guia profético!
- Por que?
- Antes de embarcarmos ele fez uma preleção sobre segurança: olhou direto pra nós e disse, como se fosse pra todo mundo: "aqueles que não se sentirem em condições físicas para prosseguir, lembramos que há instalações de nossa empresa no meio da trilha e devem aguardar lá a equipe de emergência. Sigam as instruções e boa excursão para todos". E fomos nós.
- São organizados.
- Verdade, mas o meio da trilha era no alto de uns, sei lá, quantos km dali e eu pifei a uns 5km de caminhada, eu acho. Comecei a sentir as panturrilhas, mas fiquei na minha.
- Maluca!
- Todo mundo brincando e eu fazendo o jogo de contente nesse "resgate", eu ia lá estragar prazer da família? Pra você ver: O Boa comprou até calça-cargo e um chapéu de safari - disse "tenho que ir à caráter!". Compramos tênis especiais, uma parafernália, até cordas pra rapel. Pros meninos, é claro.
- Nossa! E você aguentou até o meio da trilha. parabéns!
- Aguentei, bebi água de coco, comi bananas, mas as pernas estavam no automático, pensei: "quando eu parar vai ser o fim".
- E foi.
- Foi. Mas tudo pelo resgate de família. Nos acomodamos por uma hora em uma espécie de "oca", mas quando tentei levantar para continuar, cadê as pernas? Pareciam não ser as minhas!
- E aí?
- E aí a desagradável sensação de ser centro de atenção, coisa que eu detesto, formou logo uma rodinha de curiosos em volta, cada um dando um palpite, eu gritei " banana, água de coco não", já estava entupida de banana e água de coco, acho que vou levar anos pra ver banana e água de coco de novo!
- Nossa!
-O Boa puto porque estraguei o programa de família. Fora o dinheirão que gastou...
- Sem razão, porque vocês tinham que estar preparados, né?
- E aí que, eu sem pernas pra seguir, e sem pernas pra voltar, o guia profético disse, os "senhores podem ficar aguardando o socorro aqui mesmo, o grupo prossegue".
- tsc, tsc, tsc!
- Cacau e Cris pensaram em prosseguir, mas o Boa se opôs: "resgate de família é resgate de família, todos ficam!"
- Tem razão, a ideia era essa...
- Mas não foi nem um pouco boa, não podíamos ter nos resgatado num restaurante?
- Mas desculpa o Cacau, ele queria algo inesquecível!
- Ah, isso foi!. Moral da história: a tropa prosseguiu, ficamos só nós naquela oca, todos com cara de paisagem, o grupo se afastando, o guia falou que vinha o helicóptero.
- Mas só podia não vir né?...
- E Cacau se desculpando o tempo todo, o Boa o tempo todo pra mim: "mexe a perna, mexe a perna", bobagem dele, nessa altura não dava mais pra alcançar o grupo...
- Que pena, teria sido tão bom...
- Até que, de repente, comecei a mexer as pernas, disse, "gente, as pernas estão mexendoI", gritei, foi quando, nesse exato momento, ouvimos a hélice, rapidinho o helicóptero pousou na clareira. Saíram uns dois caras-armário, paramédicos eu acho, com uma maca em nossa direção.
- Aí eu disse baixinho, "gente, as minhas pernas já mexem!" Boa disse que eu me calasse e que minhas pernas iriam ficar paradinhas, até o helicóptero pousar na volta. Ele queria mesmo era andar de helicóptero!
- "É a senhora ali", disse o que devia ser o piloto, me botaram como eu fosse uma pena na maca e, curto e grosso: "só mais um acompanhante!" Boanerges ficou aparvalhado: "e eles, meus filhos e as noras ?"- O helicóptero só tinha duas vagas.- "Eles descem a trillha de volta", ele disse. "Mas sozinhos?" Boa perguntou. "Mas não tem erro, só tem essa trilha,, só vão na direção contrária. Sem erro, é cedo". O homem emprestou um aparelho pra Cacau que parecia um rádio, para o caso de "terem algum problema". Nos despedimos dramáticos como nesses filmes-remela da sessão-da-tarde.
- Ah pena, não foi todo mundo!
- Aí fomos, os dois, eu morrendo de medo do helicóptero, e preocupada com os meninos. Boa encantado na fantasia de caçador.
- Mas... então, que outra chance você teria de andar num helicóptero que não fosse um resgate, pensa por esse lado!
- Olha, dispenso numa boa!Não vi nada, não abri os olhos até o bicho tocar no chão. Ao descer quiseram me botar na maca de novo, eu disse que não ia de maca, que as pernas estavam mexendo - embaixo tinha uma ambulância e uns fotógrafos já prontinhos pra mandar minhas fotos prá mídia.
- "Senhora, a imprensa ta aí fora..." disse o cara da maca.
- Tentei levantar, mas Boanerges veio pra mim, "você não está entendendo que você é notícia, famosa por um dia! Deita nessa maca, entra na ambulância e faz cara de lesada" - obedeci, fechei os olhos morrendo de vergonha, um maluco com microfone na minha boca, outros assediando Boa e ele se achando... ele é quem ficou famoso por um dia, aparecer mesmo é com ele.
- Ele e a torcida do Flamengo, Cremilda. Bom, afinal isso teve um lado divertido aí, né?
- Boa deu todos os dados para eu sair a idosa na matéria! Não perdoo!
- Hahaha! Nem é tão grave assim, sua boba. Afinal ele não mentiu.
-Aí é isso, da emergência fomos logo liberados, pra casa esperar os meninos que já estavam lá. Na porta e recebendo a gente com aplausos, tudo por causa de uma simples câimbra...Só uma câimbra!
- Então... Foi ou não foi um resgaste de família memorável? Até registrado em jornal e tudo!
- É... até que foi, agora é deixar passar a onda dessa fama aí.
- Fama?
- É, parentes, colegas, vizinho, amigo, tudo perguntando a mesma coisa!
- O que?
- Quando é que eu vou fazer uma próxima trilha...
- Hahaha, e quando é?
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