O panetone (Natal)

Rosilda entra no ônibus, como todos os anos, senta com suas muitas sacolas e embrulhos. Cremilda olha e comenta:

- Todo ano a mesma coisa, depois dizem que a vida não tem a tecla "replay"...
- Fazer o que? Cesta de Natal, presentes ganhos e prá dar, mas é uma canseira gostosa, ufa! Aliás, cadê as suas?
- Contratei tudo por aplicativo, meus problemas acabaram! Vão deixar deixar na minha portaria, quer coisa melhor?
-  Assim você fica feliz sem ficar cansada! Mas eu gosto de pegar, sabe...
-Feliz...Tirante os amigos ocultos/desconhecidos que a gente só cruzou uma única vez no corredor, o panetone, o...
- Não comece!
-Está bem, mas que panetone é uma coisa incompreensível, isso é. Panetone, miojo e pantufas fogem totalmente à minha compreensão . Uma vez sonhei que minha casa foi invadida por panetones voadores, entrando pela janela, e se espalhando por todos os cômodos, e eu gritando "não, panetones não...!"
- Hahaha! É mais tradição...
- Pior que você sempre ganha panetones e pantufas. Miojo, pelo menos, ninguém tem coragem de dar, pelo menos por enquanto, mas do jeito que a coisa vai...
- Ganhou pantufas de natal?
- Não, graças a Deus, mas tremi, não ia conseguir disfarçar mais o sorriso amarelo. Ganhei porta-retrato, previsível, mas pelo menos é um porta-retratos.

- Vai passar com a sogra de novo?
- Não, com minha irmã em São Paulo.
- Maravilha, então, tá vendo, a vida não tem tecla replay! Finalmente!
- Não tem replay, mas têm flash back. Há um dez anos fomos a São Paulo passar o Natal também com a Ledinha, e Boanerges teve a coragem de soltar uma daquelas piadas bairristas. Mas dessa vez ele vai bem patrulhado. Tô de olho!
- E qual foi a piada?
- Uma do Bussunda, perguntaram ao Bussunda qual o lugar mais esquisito que ele fez amor, ele disse "São Paulo..."
-tsc, tsc, tsc... ha-ha!
- Pois é, sabe né, o marido da Ledinha, o Edgar, é um pauliiista, ultra-quatrocentão, só o Boa que riu, sabe aquele silêncio típico de mancada...?
- Imagino, mas nesse natal vai dar tudo certo, sem flash back nem mancada. Vai ver.
- Pior que o Boa quer levar um panetone dos grandes, que ele ganhou, pra Ledinha e o Edgar. Eu disse, só passando sobre meu cadáver!
- Mas tem gente que gosta, Cremilda, ué!
- Panetone ninguém compra, todo mundo ganha.
- Mas pra ganhar, alguém tem que comprar...
- Patrões e empresários. Panetone é  mais ou menos como almoço de sogra aos domingos, você não pode recusar.
- Simples, basta perguntar se a Ledinha quer!
- Haha, é certo que ela vai responder, "adoro queridinha, mas ganhei tantos, que saí distribuindo".
- Antes assim...solidariedade.
- E tome panetone pra porteiro, empregada, professora de filho, gari, carteiro, uma vez até dei um que estava me aporrinhando na sacola  pro guarda de trânsito, num desses dias de frenesi de Natal com chuva, trânsito e embrulhos.
- Então, e ele não ficou feliz?
- Eu duvido, fez cara de paisagem, mas agradeceu. E tome panetone pros pobres!
- Mas natal é isso, as coisas circulam, os afetos circulam, faz parte da corrente de amor.
- Não sei não, heim, se tem uma corrente, a do panetone dá de dez em qualquer uma, é hour concour! E você, vai ter replay?
- Não, a Jussara me convidou pra uma viagem às cidades históricas de Minas.
- Beleza, amiga, então estaremos todas viajando!
- Pacote de Natal. E vai ter eventos para singles...
- Para o que?
-Singles, solteiros!
- Hum, então, é pra ti mesmo!
- Não vejo a hora!
- Quem sabe não é essa a hora, heim?
- A expectativa é essa...
- Mas, vem cá, me diga uma coisa: nesse pacote aí não tem panetone não, né?
-