- As pessoas de nossa geração se aposentaram ou estão se aposentando...né?
Rosilda instigava Cremilda a responder com o né no final da frase
- Hum ? Aposentar? tá certo.Velho tem mais é que se aposentar. Mas eu prefiro a ponte.
- O que tem a ver...?
- Sei lá...Parece que vou chegar mais rápido à aposentadoria pela ponte.
Cremilda tenta mudar de posição para não esticar muito a conversa. Dá uma cochiladinha, logo interrompida de novo.
- Você viu? -Rosi mostra o celular, detendo-se numa notícia.
- Quem, quem? -Acorda assustada, olhando para os lados.
- Aqui na notícial. Vamos encarar muita ponte ainda. Olha só, pela nova lei da Previdência...
-Já vi a notícia hoje de manhã. -Lei da previdência! E você me tira do meu sagrado cochilo por causa da maldita lei da previdência! Logo segunda-feira!
- Pô, desculpa, Cremilda,só ia dizer que vamos ter que trabalhar mais um tempo, contribuir mais e receber menos. Hehe..
-Ia dizer não, mas já disse! Rosi, dá um tempo, hoje é segunda-feira, a empregada faltou, o Boa chegou tarde, passou a noite procurando o tião.
- Ah, coitada! Quem é o Tião?
-É o papagaio dele. Graças a Deus que roubaram! O Ibama devia é levar o dono junto .
-Ops...!
Depois de uma pausa, Cremilda desperta e se apruma no banco do ônibus.
-Agora, você conseguiu, acordei...o que você estava dizendo mesmo...?
-Não, era só mesmo comentário da Reforma da Previdência. Se você já leu...
Cremilda senta impertigada e aborrecida.
-Poxa, não tive a intenção, amiga...
-Então, já que eu acordei, faça seu comentário.
-Pensando bem, essa coisa de e aposentar cedo, acho que estamos entrando numa nova era, com a globalização....
- Aposentar cedo? Nova era? O que você está dizendo? Você está apoiando essa lei desgraçada? Pois eu quero me aposentar e quanto mais cedo melhor! Ninguém devia trabalhar tanto assim nessa vida tão curta. Trabalhar muito só é bom prá artista! Aliás eles, por lei, deviam trabalhar mais tempo pra divertir a gente.
-Não, não que eu não queira aposentar só por aposentar. Eu quero mesmo é cair no mundo, viajar até as pernas não aguentarem !
-Eu heim, depois desse vaivém todo dia, ainda vou pensar em viagem? Já vaivim muito!
-Que nada! Olha que eu já viajei,heim! Mas vou correr muito mundo ainda, sabe...
Cremilda limpa os olhos e olha para fora.
-Sei. Como aquelas velhinhas americanas, bambas das pernas,depois de ficar anos a fio, de cá prá lá , de lá prá cá, sai tudo em bando pelos trópicos, bisbilhotando tudo, de meinha curta, chapéu de palha, bengalinha, pensando que estão em Buenos Aires, fazendo tour pelos países exóticos, até que são assaltadas no Pão de Açúcar, pegam um motorista de taxi safado,que fala portinglês e enrola elas, depois voltam pros States, têm um derrame cerebral e babau!
Rosilda que tinha ficado calada algum tempo, finalmente retruca:
-Quem disse que eu vou ser como essas velhinhas americanas ?
- E eu disse isso?
- Se for, serei uma velhinha especial, como a Maude[i], mochileira, poderosa,correndo mundo sozinha! Aliás, sempre viajei e nunca foi em bando, você sabe. E nunca de meinha, nem chapéu de turista.
Cremilda deu-se conta do clima que havia exagerado. Percebeu que tinha contaminado o humor da amiga. Tenta consertar.
- Não,claro, imagina, você nem é uma velhinha americana, nem é velhinha... Mas e se fosse hehe... ? hehe, bobagem, esquece, amiga, me lembrei das velhinhas americanas, sei lá, assim por acaso,à toa.
Faz-se um vácuo, um clima estranho entre as duas.Rosilda após o vácuo,pega o celular..
- O que você vai fazer?
- Uns cálculos.
-Cálculos de quê?
- Me diz aí. Faltam quantos anos mesmo para você se aposentar?
Cremilda pensa um pouco:
-Uns cinco. Não, uns cinco e meio.
-Huhum... - Rosilda começa a dedilhar a maquininha do celular.. Cremilda bota os oculinhos, curiosa e acompanha.
- Um ano, trezentos e sessenta e cinco, menos trinta, tirando uns dez feriados por ano, menos duzentos e quarenta, vezes dois... - Tecla Rosilda compenetrada , fazendo as contas em voz alta.
- Vezes cinco e mei.. - Tecla um ponto final com determinação e mostra a conta para Cremilda:
-Olha aqui , duas mil seiscentas e quarenta!
- Duas mil seiscentas e quarenta o quê ?
-São duas mil seiscentas e quarenta idas e vindas. Na média. De barca ou de ponte, é pegar ou largar, capische?
-Não...
- Duas-mil-seiscentas-e-quarenta-idas-e-voltas pela ponte ou barca, até você se aposentar, que tal? Daria umas boas voltas ao mundo.
Rosilda guarda o celular e sorri para Cremilda, espantada.
-E daí ?
- E daí, nada. Você não disse que pela ponte chega mais depressa? Então!
Passou-se um minuto no cérebro de Cremilda, até caírem as fichas. Ainda teve que ouvir, a contragosto uma frase fatal :
-Pode começar sua contagem regressiva, minha amiga.
- Maldita segunda-feira. Ao diabo com as velhinhas americanas! - pensou.Cremilda
[i] Maude, personagem de Harold and Maude...do filme de Hal Ashby, 1971.Comédia Trata do relacionamento entre um rapaz de 20 anos com obsessão pela morte, que passa seu tempo indo a funerais ou simulando suicídios, e uma senhora de 79 cheia de otimismo e disposição para viver.
Criador:DmitryMo
Crédito:Getty Images/iStockphoto
1 comment:
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