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2.7.16

Passageira acidental

Cremilda hoje só está voltando no ônibus.

-Perdeu o ônibus da manhã, heim, dorminhoca?
-Pois é, dormi pouco. levantei feito uma alma penada, já viu, né? Sabe pegar a barca no automático?
-Horrível, se tem coisa que me arrasa é dormir pouco.
-Não, mas você não sabe o que aconteceu.
-Você dormiu na barca e voltou pra Niterói.
-Não, saí da estação com pressa e com sono. Chego na Praça XV, dou, não sei como, com um carro amarelo, de porta traseira aberta, com um cara lendo jornal na frente.
- Sim...
- Sentei atrás e disse pra ele "meu senhor, por favor, Botafogo".
- Botafogo, o que você ia fazer lá?
- Ao enterro da mãe do chefe, não te falei?
-Ah sim!
-O sujeito, grandão, baixou o jornal, virou-se lentamente, olhou para mim por cima dos óculos,e mandou: "Senhora, isto não é um táxi".
-Não acredito! E você?
-Eu disse sem graça "Não..?" e, morrendo de vergonha, fui botando as pernas pra fora do carro e me desculpando.
-Cremilda, é o cúmulo da distração!
-Pior que o sujeito falou: "senhora, tô indo pra Botafogo, só tô esperando um amigo, se a senhora quiser..." E justinho nesse instante veio o tal amigo cumprimentando ele e me olhando curioso.
-Não me diga que você entrou no carro de um estranho, aliás com dois estranhos, e foi com eles pra Botafogo?
-Fui. O tal amigo me olhou, ali o motorista disse " é uma passageira acidental" , acharam muita graça da minha distração. Eram pessoas educadas, nos apresentamos e tal... aí, sei lá, fui.
-Você é doida, Cremilda. Doida de pedra!
- Eles tinham um negócio ali em frente ao São João Batista, justamente bem do lado de onde eu ia. Olha que coincidência!
- E você não ficou nem um pouco com medo?
-Pra ser sincera, não. Me deu até o cartão deles.
-Tsc...eu não ia nem morta, agradecia e tal... 
-Mas depois descobri a razão do convite, da carona.
-Qual?
- O grandão me telefonou à tarde pro trabalho. 
- Como te telefonou?  
- Disse onde trabalhava.
- Disse eu nome e onde trabalhava. Louca duas vezes!
- Sabe qual era o negócio deles?
-Não.
-Venda de jazigo!
-Não me diga!
- Ele disse que me viram uma cliente em potencial.
- O quê, então te achou uma pé-na-cova!!!
- Mas qualquer um é cliente em potencial, né, Rosi? Conversa de vendedor. Eu disse não, muito obrigada, que eu gozava de perfeita saúde e que, se não for por acidente, ia viver, se Deus quiser, ainda muitos anos!
- Claro...pelo menos é o que a gente pretende.
- Ele se desculpou, disse que era só um investimento pro futuro, um investimento certo e seguro, melhor que casa, não tinha retomada do imóvel , não tinha briga de herança, dava retorno...Era um bem de raiz.
- Com certeza,  raiz de sete palmos! Cruzes, pé-de-pato, mangalô três vezes! Hum, hum, bate na madeira!
- Precisava ver. Queria me convencer que eu e minha família ficaríamos muito confortáveis, muito bem localizados, com vizinhança fina, ponto excelente, ao lado do Corcovado, cova ampla, para uma família de cinco membros, mas se eu quisesse tinha para dois. Eu e meu marido.
- Se bobeasse, tinha até suíte na cova! tsc tsc tsc...
- Ah, e mais, tinha alta tecnologia, caso eu fosse enterrada viva, tinha  um respiradouro e um alarme que eu podia acionar, ao acordar.
- Já vi na televisão um maluco que fez isso no jazigo dele...
- É mesmo? Vai ver até que esse maluco é o dono do negócio.
- Cada uma! Corretagem de jazigo! E você ainda pega carona com os malucos!
- Pois é. Agradeci e disse que morava em Niterói e preferia ficar por lá mesmo, depois da passagem .
-Claro.
-Ainda tentou me convencer de que eu não podia comparar Botafogo e Niterói.
-Rá! Que diferença faz estar morto em Botafogo ou em Niterói?
-Foi difícil me livrar do homem, viu.
-Cada uma!
- Ainda teve a cara de pau de dizer que a minha carona acidental podia ser algum sinal do além, olha só!
- É, Cremilda? Ele disse isso?
- Disse, um bom filho da p... que foi? o que você está pensando, com essa cara de quem tá pensando?
- Nada.
- Te conheço, alguma coisa você está pensando.
- Ãhn, já ouviu dizer que nada acontece por acaso?
- Já, filosofia de autoajuda.
- Olha aqui, tô até arrepiada! Pensa bem, hoje que você ia justo a um enterro, encontra esses caras, que trabalham em frente ao cemitério, pega carona, corretores de jazigo...Tem certeza que os caras eram de carne e osso?
- Tá brincando! Que bobagem é essa?
- Não, nada, mas tem umas coincidenciazinhas aí, não tem não?
- Já...Ah, lá vem você, sabe de uma coisa, Rosi, eu não devia ter é contado! Esqueci que você é sugestionável..
- Fez bem em minha contar, fez muito bem! Por via das dúvidas, vamos até a Igreja, só um pouquinho espantar os maus fluidos...
- O que? Você sabe como eu sou...
- Eu sei, mas vamos, Cremilda! Não custa nada. Tem uma missa agorinha mesmo lá na São Judas Tadeu.
- Mas se eu não tenho fé...O que vai adiantar?
- Eu tenho, tenho fé pra nós duas!. Pra aplacar minha aflição, amiga, a minha! Depois que você me contou isso, eu é que não vou ter paz sem uma prece, vamos lá, por favor!
- Tá bem, eu vou. Mas  só prá fazer companhia, heim?
Chegam à igreja, sentam-se, a missa já estava começada, ouvem o padre anunciar que a missa é "especial em intenção dos mortos". Cremilda e Rosilda se entreolham. Rosilda fala ao pé do ouvido de Cremilda:
- Viu, como nada é por acaso? Vamos orar.
- Tá bem, mas é só por sua causa, heim?

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