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6.3.21

Táxi driver

Rosilda ajeita o jornal, Cremilda ajeita a si própria:
-Tanto assalto, desgraça, insegurança, não sei aonde a gente vai parar. Sabe que quase 80% das pessoas da cidade já foram ou tiveram parentes ou conhecidos assaltados?
-É mesmo? Pois eu estou entre os 20% que escaparam...
-Falando nisso, deixa eu te contar, me aconteceu ontem um lance tipo táxi driver .
-Táxi driver? Conta isso, Rosilda!
-Quer dizer, mais ou menos...
-Conta aí!
-Ontem você sabe, saí mais cedo pra ir ao dentista, e peguei um táxi na estação das barcas pra voltar pra casa. E aí, quando fui dizer ao motorista para onde ia, ele disse assim: “Pode deixar, eu sei.”
-Rá, tá na cara, era um conhecido seu!
- Juro que nunca vi mais gordo.
-Mas claro que você perguntou de onde ele te conhecia e tal...
-Não, me deu uma coisa, eu tentava explicar, ele só dizia “pode deixar, dona, eu sei”. Aí eu deixei, paralisada!
-Peraí, Rosilda! Eu falava: “que mal lhe pergunte, de onde o senhor me conhece, como sabe onde eu moro?”, como assim?
-Deu branco, sabe quando dá branco?
-Não, nessas horas não me dá branco não,
-Pois é, mas deu.
-E ele estava indo pelo caminho certo?
-Certíssimo!
-Então era um fã, um admirador secreto! Era bonitão? Parecia com o De Niro, pelo menos?
-Aí é que está, é daquele tipo que você nunca presta atenção...meia idade, comum.
-Então foi isso. Não era nenhum De Niro, você não prestou atenção.
-Pois é, me deixei levar, sabe seqüestro consentido, ele me seqüestrando pra minha casa. Por via das dúvidas, fiquei coladinha junto à porta e com a mão na maçaneta, nunca se sabe...
-Hum...Tô vendo que não aconteceu é nada...
-Parece que ele sentiu minha aflição. Pra relaxar, de repente disse: “sou aposentado, mas não agüento ficar parado, sabe como é. Prefiro o stress da rua a ficar em casa lendo jornal. Na rua as coisas acontecem...” E eu de olho aberto no trajeto, nem piscava. Me lembro que pronunciei “é verdade”, tudo que ele falava, eu falava “é verdade”.
-Só você, mesmo heim, Rosilda!
- Aí ele continuou: “virei taxista e assim me divirto bastante”.
-E-ê, já pensou se era o Jack o Estripador, heim? E você, falou o que?
- Nada. Ri amarelo, nervosa. Aí fiquei disfarçando, comentando o trânsito, o tempo, essas coisas que a gente fala pra encher o vácuo, - sabe aquele vácuo? -minha imaginação bolando manchetes, me imaginei me jogando do carro em movimento, essas cenas de filme de ação.
-Rosilda, eu não acredito! Tá na cara que você não se jogou, não foi seqüestrada e nem teve os míseros quinze minutos de fama!
- Teve final feliz graças a Deus, mas a sensação de viver de verdade um thriller é impagável!
- Thriller, Rosilda?
- Um pouquinho de adrenalina não é nada mau de vez em quando, nè?
- Adrenalina??? Ninguém merece! E como acabou essa aventurazinha mixuruca, heim?
- Acabou em frente a meu prédio.
- Mais previsível impossível! Sem-graça esse teu suspense, heim, Rosilda? Cadê o táxi driver? Fala sério!
-E tem mais, quando fui pagar, ele não quis aceitar.
-Hum, aí já melhorou, virou filminho “cor-de-rosa”.
-Sorriu para mim e disse: ”Senhora, somos vizinhos ”!
- Que vergonha, heim, Rosilda, seu vizinho! Que vergonha! E o que você falou?
-Eu disse com a cara mais sem graça deste mundo:”ah,é?”
- Tsc, tsc, tsc! Papelão!
-Ele disse “eu vinha pra casa mesmo, não custava nada...” O pior não foi isso.
-Declarou-se! Vizinho apaixonado!
-Não, pegou minha mão e beijou o dorso, bem à antiga!
- Antiquado, mas tá bom, gentil...Você pelo menos sorriu, agradeceu, pediu desculpas e tal, pelo vexame...
-Eu quis me desculpar, mas acredite, mal deu pra eu gaguejar um “m-muito obrigado”, a boca não obedecia. Fiquei dando adeusinho, com um sorriso idiota nos lábios. Quando dei por mim, o homem estava entrando na garagem do meu prédio .
-Guardou a cara dele pra não dar mais mancada, pelo menos?
-Mais ou menos...
-Ô, Rosilda, a tua mãe não te ensinou a olhar por onde anda não?
-Ensinar ensinou, mas isso já faz tanto tempo...
-Deve ter muito tempo que você não vê Taxi Driver, heim, minha amiga? Nada a ver!

Nota: Taxi Driver, filme de Martin Scorcese(1976) relata a vida de um motorista (Travis) que sofre de insônia e Trabalha à noite em Nova York se oferecendo para trabalhar no turno da madrugada, dirigindo sem rumo pela periferia de Manhatan Observa Nova York de seu táxi e irrompe com violência contra o que julga ser a escória que contamina a cidade.

A diáspora


Pilha De Desenhos Animados Sujos Dos Pratos Ilustração do Vetor ...
- E aí, amiga, que tal as férias, não me contou ! 
-    ...
- Mas que cara é essa?
Cremilda tira um cartãozinho de dentro da bolsa
-  Férias, que férias? Até sexta, eu estava nesse endereço.
- Que foi, separou ? 
- Nada. Houve uma diáspora .
- Como assim...diáspora? Deixa eu ver se entendi. Não, não entendi.
- Você vai entender.
- Uau! O que houve?
- Dei férias pra Dôra.
- Normal. Patroa de férias, empregada de férias.
- Foi o que pensei.. Pois é, no final quem tirou mesmo férias foi ela.
- Por que?
- Sabe onde ela passou as férias?  Te dou um doce.
- Um doce, hum...Na sua   casa!  
- Bingo!
Mudou os planos. 
- Sim e não, na verdade as férias dela estavam acumuladas, eu contava com ela pra ficar em casa, mas não de férias, né, como ia fazer tour pelo Rio, nem pensei em hotel...
-Claro.
-  Acontece que ela tinha que tirar, o tempo passa, você nem se dá conta.
- E pode dar encrenca da boa...
- Pois é, ela veio pra mim assim: "Dona Cremilda, não tirei férias ainda, sabe o que  é, eu não tenho família e, se a senhora não se incomodar, eu posso ficar por aqui mesmo..."?
-  “Por aqui mesmo” é a sua casa. Tsc, tsc,tsc. E o que você fez?
- Eu? Nada.  Só me preocupei com o atraso das férias dela...  Permiti.
Tudo por uma empregada!.
- É. Falou até que, se eu precisasse, ajudava em alguma coisa,  descontava estadia  e tal...Olha que situação, eu disse ajudar não, tá doida ? Com lei trabalhista não se brinca! Mas fiz ela declarar por escrito que, em razão de estar hospedada na minha casa, me liberava do adicional noturno, essas coisas da C.L.T. Orientação do Boanerges. 
- Fez bem.
- Só que o Boanerges fincou pé. Queria ir pra um airbnb, ou hotel, não ia ficar de ponte todo dia,  interesse zero em tour pelo Rio, sabe né? Tampouco queria ficar em casa sem mordomia. 
 - Faz sentido...
- Sobrou pra mim
- Xi...  E Dôra lá de férias. 
E Dôra lá de férias.  
- Eita! E que tal foi ter a Dôra como hóspede?
-  No inicio eu fechava os olhos e  mentalizava, “Dôra  é minha hóspede, Dôra é minha hóspede”,  mas lá pelo terceiro dia, começou a me dar um frio no meio da espinha, quando vi o que eu ia encarar, cesto de roupa enchendo, no outro dia a louça subindo, no quinto, a poeira nos móveis, ela entrando e saindo de casa de canga, aliás tem uma bela coleção de cangas, queimadinha, bom dia, boa tarde, boa noite, e eu, toda  cheia de dedos, pisando em ovos, pra  não incomodar, quando ela estivesse no quarto dela, aliás uma suitezinha bem boa...
- Tsc ! tsc! tsc!  Que situação...
- Até aí nada demais. Se pelo menos ela não ficasse às vezes com as botucas dela  em cima de mim, pra ver se eu fazia o serviço direitinho... Eu tinha que ficar na moral , porque eu reclamava até dos farelinhos de pão na mesa...
- Pelo menos você viu o quanto você é exigente.
- E as incertas  tipo "a senhora vai deixar a louça toda no escorredor, posso guardar?"´ "As garrafas dágua tão vazias, posso encher?" ou ,  "deixa aí a louça suja aí que eu lavo", coisinhas assim, como quem não quer nada, e eu respondendo toda hora "Dôra, você está-de-férias ”!    Um  mantra! 
- Viu, aí é  que a gente vai se colocando no lugar do outro.
-  O quê? Queria eu estar no lugar dela! 
-  Se ao menos ela fosse  só pra dormir...
- Nada! . Depois de chegar da praia, tomava banho, comia a quentinha dela, dormia, via as novelas, todas, das seis, das nove!   E o BBB, feliz da vida! Só saia   pro forró, às sextas.
- Férias são férias.
- Segurei a situação só por sete dias.  No oitavo, arreguei, decidi ir pro airbnb no Catete. E despachar os meninos. Queria sossego pra conhecer o Rio de Janeiro. O Boa tinha razão. 
-  Entendi a diáspora. E o tour no Rio?
-  Adiei pela décima vez a ida ao Pão-de-Acúcar  e ao Museu do Amanhã. Pra mim, é o museu do sempre amanhãResumo, fiz uma trilhazinha na Floresta da Tijuca, fui ao mosteiro de São Bento, que não conhecia, fiz um sightseeing ligeiro pelo Rio históricoParque Laje,  Largo do Boticário, feira do Lavradio, Lapa, Saara...  só pra não perder todo o roteiro que programei. Não vou dizer que não foi bom, mas antes  tivesse ido pra Salvador com você. Passeio para o Boa é passeio de carro. Fiz quase tudo sozinha, ele ia encontrar com os amigos. Ele disse que era a "Hora-da-empregada-a-vingança". Pra falar a verdade,  todos estavam felizes nessas férias, menos eu.
- E ela ficou sozinha?
- O Cris pra casa da namorada, os pais dela viajaram. Cacau quis ficar  em casa.
-- E a Dôra ficou livre-leve-solta com Cacau?
- Sim. Eu ia uma vez por semana lá ver como as coisas andavam.
- Hum...
- Que foi? 
- O Cacau... 
- O que é que tem?
- Não teve medo, não?
- De que?
- Hum, sei lá, rolar alguma coisa...
- Da parte do Cacau? Não ...
- Sei lá, da parte de qualquer um dos dois... Quantos anos ela? 
- Vinte e sete, vinte e oito ...olha aqui (mostra a foto dela no celular)
-  Hum... Então, minha amiga, você pode  ter só trocado de  problema.
- Como assim?
- De um trabalhista por outro de assédio.
-  Não, não... O Cacau  é um cara muito centrado...não creio.
- Ô, amiga! Dando um mole desses? Numa sociedade machista?
-  . . .
- Já pensou nisso?
- Hum, coisa ultrapassada. Patriarcal, fora da moda!
- Sei não. Sexo nunca sai de moda..
- ...
-O que está pensando aí?
- Hum?
-O que você, Dona Cremilda Tomé, está pensando?
- Quer saber o que eu acho mesmo, Rosi?
- Quero.
- Sossego sossego a gente nunca tem , né?


(Essa crônica é baseada em fato real)

13.9.20

Se eu fosse candidata...


Ônibus atravessando a cidade. No caminho muitos agitam bandeiras e bandeirolas de lá pra cá. Cremilda e Rosilda observam da janela:
- Será que eles acreditam nisso mesmo?
- Em quê, Cremilda?
- Que com essas bandeiras vão emplacar candidatos?
- Tem sempre um distraído que de repente se liga: "ih, é mesmo, tem eleições!"
- O de sempre, os candidatos dizendo que têm solução para coisas que  não são resolvidas há séculos!
- Hum... um bando de ilusionistas.
- Agora é tudo mídia, internet...
- Isso tem uma coisa de bom: baratear a campanha, o que justifica agora a dinheirama gasta, se basta postar um retratinho ou um vídeo nas redes ? 
- De graça! Bendito Zuckerberg!*
- Desânimo... Não sei, parece que tá tudo tão... tão sórdido!
- Que nada, acho que tá mais transparente, avançamos,  só não tem acesso à informação quem não quer.
- Não é bem assim.
- É sim, vai no Xingu ver se lá não  tem redes sociais!
- Que adianta alta tecnologia, se a maioria do povo é analfabeto funcional? E as fake news?
- Tudo tem seu lado bom e ruim. É só opovo ter acesso à boa educação.
- Mas boa educação é uma coisa de que todo mundo fala, mas ninguém sabe o que é. É que nem o tal bóson de Higgs**!
- É preciso definir essa boa educação. Se tem tantas reformas é porque ninguém tem a fórmula.
-  Com toda franqueza, também não sei. 
- Se eu fosse candidata a alguma coisa, eu ia me deter nessa questão. 
- Se eu fosse candidata, eu ia ter menos gente na folha e mais nas ruas. 
- Mas já existem os fiscais...
- Que fiscais? Estacionamento e camelôs? oóh!! Money. 
- Como seriam então seus fiscais?
- Nada muito novo. É só botar gente pra ver  ralo entupido, buraco, poste e marquise desmoronando, árvore para podar, esgoto e lixo nas ruas, cão sem dono,criança largada...
- Mas  isso tem...só que  a gente nunca vê.
 - E mais, criava novo cargo: fiscal-de-cartazes!
- Cartazes?
- Essa seria uma parte da plataforma da educação, se tem erro de português no cartaz ou placa de rua, dava um prazo pro dono do estabelecimento consertar, senão autuava!
- Hum...Taí, ninguém pensou nisso...
- A multa não seria grana, seria um curso intensivo de português.
- Boa ideia, já tem o meu voto!
- Obrigada.
- Sério! Com  essas ideias, você devia se candidatar.
- Eu?
- É, por que não? 
- São só ideias, e de ideias o mundo tá cheio.
- As vezes uma boa ideia muda o mundo.
- Verdade.
- Lembra o que Tolstói disse?
- Não. O que ?
- Se queres mudar o mundo, começa por tua aldeia.
- E por que é tão difícil?
- O que?
- Mudar sua aldeia?


* Mark Zuckerberg, criador do Facebook
**Bóson de Higgs , a tal "partícula de Deus", se você souber o que é, nos ensine!

Dinastia do bacalhau


Cremilda e Rosilda  estão num restaurante-com-cara-de-boteco,  mas famoso por seus bacalhaus e frutos do mar, e ainda aguardando a chegada das amigas para confraternizarem o fim de ano. Muito tumulto e aperto entre as mesas. Elas vão chegando aos  poucos e sendo recebidas com muita festa. A  cerveja já encabeça as entradas,beijinhos e brindes pra lá e prá cá.




1962 Retrato De Velho Pintura A Óleo Assinado | eBay- Não acredito, Rosi! Você pediu cerveja sem álcool. Ah não! - Comenta Cremilda provocando.
- Sim, é álcool   nunca mais !
- Vaia nela,  meninas. -  Seguem-se as vaias e os  risos e gritaria de "álcool, álcool,álcool""bebe, bebe,bebe"!
- Por isso mesmo, sem chance.  Se ainda tivesse com um gato...Prefiro ficar sóbria.
- Hum (Cremilda sussurrando) olha ali,  tem dois gatos na mesa vizinha, sozinhos....
- Sozinhos e bem casadinhos, pode apostar. Ou são namorados.
- Como saber? Só chegando ...
Um deles percebe que é alvo de comentário, levanta um brinde e dá um selinho no companheiro.
- Não disse?
- Não perca as esperanças.
- Não adianta, amiga. O mundo é gay.
Cremilda levanta o copo:
- Um brinde à cerveja fake!
- E eu ao mundo gay!
Risos e aplausos.
Rosilda, a certa altura, se distancia um pouco das conversas e dá um giro com o olhar naquele espaço popular e intenso, simples com suas toalhas xadrez, transbordando euforia de fim de ano, quando se depara com um enorme retrato a óleo na parede, ocupando um canto inteiro da parede. Um senhor, idade indefinida, para além dos setenta, nem distinto nem indistinto, olhar vago, inexpressivo. Seria aquele quadro uma homenagem póstuma, um abuso de vaidade, ou a paga da dívida de um pintor? Tentou comentar com as amigas, mas elas estavam tão atentas aos "babados " do trabalho, que achou melhor elucubrar, pensando na causa mortis daquele retratado, para quem imaginava nada de muito espetacular ter acontecido. Devia seria ser o primeiro dono do restaurante e um filho prestou-lhe uma bela homenagem.  Um trivial AVC, ou um câncer talvez  - seu aspecto era de uma pessoa  um tanto esquálida e já tomada pelos achaques da idade, coitado. Perdida nesses pensamentos,  de repente, sente umas batidinhas nas costas e vê surgir,  nada mais nada menos,  bem ali do seu lado,  o  morto  ao vivo!. Um salto, um grito, a mão ao peito  foram instantâneos. Ele, surpreso, se desculpou. - Senhora..  perdão não pensei em assustá-la  tanto!
- Estava distraída, me desculpa o senhor... respondeu Rosilda,  abanando-se com o cardápio -
  Nada a desculpar. Então...  o senhor então  é.. é ele? - disse Rosilda aponta para o retrato,  sabendo que ele era ele.
- Perfeitamente. Um amigo pintor que,  infelizmente que não está mais entre nós, doou-nos.
- Ah, o pintor foi quem morreu...,  disse Rosilda quase inaudível, -  que ironia heim?
- Sim, levou-o um  câncer. Caríssimo amigo.- Disse ele diante das amigas, ainda perplexas com a reação de Rosilda.
 - Boa noite, senhoras.  Sou o dono do estabelecimento,  Joaquim  Oliveira III, às suas ordens.  Estou cá a saber se as distintas senhoras estão  bem servidas .- disse ele com um leve sotaque lusitano.
 Todas responderam em coro que sim. Ao verem depois o Joaquim  Oliveira III se afastar, alguém comentou
.-Hum, dinastia do bacalhau!
E voltando-se para Rosilda:
- Que  chilique foi aquele, Rosi? O homem é feio, mas não é nenhum frankenstein! Parece que viu um fantasma!
- Meio que sim. Sabe o retrato a óleo  ali  na parede,- todas olharam -  eu jurava, pela minha mãezinha, que  só podia ser póstumo! Fiquei imaginando do que esse senhor  teria morrido, uma morte chinfrim ou gloriosa, ou o que fez pra merecer um quadro daqueles  e, justo nessa hora, dou com ele chegando pelas minhas costas, como se tivesse saltado do quadro!
- Tem razão, Rosi.
- Tá explicado! Só podia ser alguém da dinastia do bacalhau! - disse Cremilda.
Risos
Alguém, não satisfeito,  ainda perguntou:
- Rosilda, fala a verdade, tem certeza que essa cerveja que você  tomou foi álcool zero mesmo?


12.9.20

A orquídea flamejante


Rosilda senta-se ao lado de Cremilda, esbaforida:                            
 - Amiga, o que foi ?  Tentando falar  com você esses dias todos...
 - Não te disse da viagem?
- Sim mas ...
- Ah já sei, aproveitei  para fazer  um detox eletrônico. Só fiquei no telefone e sms.  Se tentou  whatsapp, facebook, então não deu. Desculpa, não te avisei.
- Entendi. Você ficou de mandar as  fotos dos meninos ..
- Acabando o detox,  eu posto. Correu tudo bem, curti ...
- O que e eu queria mesmo é saber o motivo desse detox.  
- Foi a orquídea.
 - O quê?
- A orquídea...
- Que orquídea é essa, mulher?
- Do começo. Antes de viajar, fui ao meu ginecologista. Estava com uma irritação na... bom, pra ser light, na vulva.
- Ih chato...
- Não , não era chato não. Era uma senhora vaginite. E já estava voltando lá, porque  o tratamento que ele passou antes  não deu resultado.
-Poxa, eu nem sabia...
- Pois é, ele me havia pedido  que acompanhasse a inflamação  usando  um espelhinho, e informasse  a ele da evolução.
- Hum...
- Mas não deu certo,  de nenhuma posição  deu pra ver, sabe né, a coluna , a barriguinha atrapalharam...
 - Ih,meu caso. E aí?
 - E aí, voltandoà consulta, ele me colocou naquela postura de exame, me pediu o celular e perguntou: - posso? - Mal dei  o aceite, ele fotografou com flash e tudo, e me mostrou o que era a tal da vaginite
- Nossa !
- Aí ele disse, a orquídea está bem inflamada. Sempre brinca assim, .Chama as perseguidas por nome de flor. Sem problema, é meu médico hás vinte anos.
- Qual seria a minha flor...
- Quando vi a foto, eu disse que a orquídea estava mais para orquídea  flamejante.
- Orquídea flamejante!
 - Aí então  fez novas prescrições e tal, e fui embora.  O pior veio depois.
- O que podia ser pior?
-Sabe a Rosane?  Amiga de trabalho e mesmo médico.
-Ah sei,  a hipocondríaca.
- Essa. Quando eu comentei com ela, ela disse duvidar que alguém tivesse uma vaginite como a dela. Campeã mundial da vaginite.
- Maluca, mandou a foto  pra ela e ela compartilhou!
- Pior que não, eu mesma,  em vez de clicar no perfil pessoal dela, foi pro grupo dela “Rosane e Amigos!”
- Uau! E são muitos?
- Você não tem ideia , sabe uma pessoa  popular?
 - Vixe! E no que deu?
- Não paguei pra ver.. Caí fora. Imagina todo mundo vendo a minha... orquídea  flamejante!
- Nossa. Quantos dias tem isso?
- Uns oito, dez dias...
- Pode apostar que ninguém  lembra mais? Liga pra Rosane.
- Sem coragem.
- Pense pelo lado positivo.  Se você não é bastante famosa, pelo menos a sua orquídea  é. Deve ter dado até trending topics .
- Nem me fale!
- Vamos às hipóteses:  a Polícia federal bateu na sua porta por divulgar  pornografia?
- Não.
- A Associação de Ginecologia te procurou pra documentar uma curiosidade médica?
-Não..
-As senhoras defensoras da Família cristã te ligaram ou vieram te aporrinhar?
-Não...
-Nem um grupo de Botânicos Míopes?
- Hahaha.,  não.

- Então, amiga, relaxa. Pode voltar pra rede, onde tudo passa como um raio. Se antes o povo não tinha memória, agora muito menos.

                                            ***
À noite, Rosilda recebe um telefonema de Cremilda
-Falei com a Rosane. Ela disse que assim que recebeu a foto, viu a mancada, e não permitiu que se espalhasse.
- Que bom! Viu, fez detox à toa.
- Mas sabe?
- O que?
- Até que estava curtindo...
- Heim???
- Sabe aquela sensação de suspense em pensar que havia algo acontecendo com você, mas fora de suas vistas? 
- E-ê !!
- Eu não queria ver e, ao mesmo tempo, queria.. Não é estranho?
- Muito, principalmente sendo a sua orquídea  o tema.
- O que você acha?
- Hum, primeiro um terapeuta; depois, acho bom você voltar ao detox.
- Por que?
- Até curar esse narcisismo mórbido.

(baseada em fato real)

21.4.20

O bombeiro de Sidney Sheldon


Cremilda e Rosilda viajam algum tempo caladas...

- O que houve?
Sidney Sheldon (Author of If Tomorrow Comes)
- Por que está perguntando?
- Tá esquisita. Você não fica calada por mais de cinco minutos, Rosi...
- É, na verdade houve algo sim, eu  estava tomando coragem pra te contar...é que... eu caí em tentação.
- Não sou padre não, mas amiga é como se fosse, qual foi a tentação, afinal? Quebrou as finanças nas liquidações?
- Não. Antes fosse.
- Hum, já vi que se arrependeu...
- Sim, mas não muito. Vamos lá (Pigarreando), lembra aquele entupimento da pia de que te falei?
- Ha-hã...
- O bombeiro apareceu.
- Normal...e daí?
- Cremilda, quando abri a porta, me vi diante de um deus grego, fiquei sem fala. Sabe, sabe... moreno dos olhos dágua? Que encanador!
- Sério? Já vi tudo, atacou o homem!
- Sim ... Quer dizer, não imediatamente.
- Sério?
- Você já teve um impacto  emocional absurdo, diante de um homem?
- Que eu me lembre, foi quando vi Alan Delon aparecer em "O sol por testemunha"(1). Mas conta.
- Estava calor, primeiro ele tirou a camisa...
- Hum, golpe baixo...
- Não, ele foi educado, mandou um "se a senhora me permite"...
- Menos mal.
 - Depois, agachado, debaixo da pia, desenroscando as peças, aquele dorso dourado, aquele tanquinho, uma nuca linda, tenho um fraco por nucas bonitas . 
- Quantos anos?
- Beirando os cinquenta, eu acho. Bem mais novo  que eu.
- Ah, idade do lobo! 
- Amiga, em seguida foi uma sequência de panaquices minhas, toda hora eu  oferecia água, café, coitado, e tome água e café, e  papinho besta tipo "calor hoje, heim"? Ele só levantava os olhos e sorria. Mais idiota eu, impossível.
- Nessa hora até café combina com calor...  enfeitiçada.
- Enfeitiçada é pouco, fiquei possuída! Como se meus demônios tivessem acordado, todos ao mesmo tempo!
- Demônios não, Rosi, vamos combinar, hormônios! Hormônios quando despertam é fogo!
- Aí ele acabou o serviço, e levantou-se, alto, parecia mesmo saído de um livro do Sidney Sheldon, só que muito suado!
- Será que os homens de Sidney Sheldon ficam suados?
- Só sei que o cheiro era bom, a energia, o clima, sei lá, tudo conspirava,  ele percebeu, devo ter corado, ele disse com malícia "vejo que a senhora também está com muito calor",  eu pingava por todos os poros.
- E mais alguma coisa.
- Pois é, aí  eu fiz a pergunta fatal...
- Qual?
- "Você não quer tomar um banho?' Só que não foi num tom casual, foi...insinuante.
- Tsc,tsc,tsc. Que bandeira heim?
- Mais que isso, ele concordou, peguei uma toalha, coração aos pulos, e ele entrou no box, aquela escultura ambulante...
- tsc, tsc,  tsc.E aí?
- E aí... E aí...
Bingo, você entrou também!
- Atrás dele, como hipnotizada, de roupa e tudo!
- ...
- Você está chocada, não está?  
- Hum... Acho que um pouco... besta
- Foi debaixo do chuveiro. Poucos minutos, mas eternos.
- Que loucura...
- Aí acabou, fui pro quarto, troquei a roupa, melhor, vesti a razão, vexada, enfim, sem saber como iria olhar pra cara dele. Vi  pela fresta da porta ele colocar as calças, aí  reparei até que a cueca dele era meio furrequinha...que vergonha, que vergonha!
- Da cueca?.
- Não, de mim. Meu mundo caiu,  eu queria era voar pela janela!
- Entendo. Mas, quer saber, eu acho que eu nunca teria um momento assim. Meus hormônios não querem nada !  Mas vai.
- Quando voltei, ele estava de pé, na sala, sereno, com a valise na mão, cabelos molhados, lindo, esperando, como se nada tivesse acontecido. Preenchi o cheque, tremendo.
-Imagino.
- E aí eu virei pra ele, não sei se pra melhor ou prá pior e disse, sem olhar : "o que aconteceu aqui foi uma espécie de acidente, tá?". Ele respondeu na maior dignidade, "a senhora fica tranquila, tá tudo certo".
- Um cavalheiro esse deus grego.
- Fiquei com a sensação de ter traído a mim mesma.
- Vamos combinar que foi , digamos, certo atraso acumulado?
- Não sei. Depois que ele saiu, chorei. Chorei muito, muito!
- Devia ter me ligado. Mas relaxa. Por que não perder o juízo de vez em quando?
-  Achei que isso só acontecia em bestsellers...
-  Sinta-se então uma personagem de Sidney Sheldon! E o nome dele?
-  Ciro.
- Então não era um deus grego, era um príncipe persa!
- Agora vem o pior. Fiquei com o nome e aquele rosto martelando na cabeça, até dormir. De manhã, uma lembrança me acordou...
- E ...?
- Caiu a ficha. Tinha sido um aluno meu, Ciro, adolescente, já chamava atenção pela beleza, numa época em que  andei dando umas aulas de reforço. O que é a vida, né?
- Pra você ver. Às vezes a vida dá banho nos romances.
- Torcer pra ele não sair comentando por aí...fazer o quê?
- Que nada! Isso é o de menos. Rezar, sim, a Aids, né, amiga? Deu mole!
- Sem chance. Na hora H foi tudo pelo ralo. Mesmo assim, foi  mágico.
- Sorte sua, foi  Deus dando uma mãozinha.
 - Foi a coisa mais alucinante que me aconteceu. 
Se é você que está dizendo...
[Suspiro]- Agora que te contei, me sinto aliviada.
- Sabe que de minha parte ...
- Eu sei.
- Mas, escuta,  você teria  aí o telefone dele?
- Mas o quê, como assim, Cremilda! Você...!?
- Sim.
 - Precisando de encanador? 
- Não,  é só pra ver como andam meus hormônios.
- Ó...
(baseado em fato real)
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1.     (1) Plein soleil (O sol por testemunha) é um filme franco-italiano de 1960, do gênero drama, dirigido por René Clément. O roteiro, escrito por Clément e por Paul Gégauff, foi baseado no livro O talentoso Mr. Ripley de Patricia Highsmith. e e estrelado por Alain Delon (Wikipédia)
2.     A foto é do escritor norte-americano Sidney Sheldon

18.4.20

Pedrita na terra dos homens


Cremilda e Rosilda se reencontram depois do carnaval com a pergunta clássica:
Pedrita - Desenho de naytiisuzuki - Gartic- E aí ,como foi de carnaval?
-  Acredite se quiser, me acabei no carnaval!
- É mesmo, Rosilda?
- Quase de desidratar! Corri blocos. bebi, com fantasia e tudo.
- Olha só... e de que você se fantasiou?
- Pedrita. Ossinho na cabeça, blusa de oncinha...tudo improvisado.
- Quero ver isso as fotos heim? E com quem você foi?
- Com três da turma do chopinho e a titia Rosa.
- Tia Rosa, olha só, senhorinha animada, heim?
- Se é! Imagina que  arranjei ate´um carinha na terça-feira no Clube. E acredite, fantasiado de Barney!
- Não, mais perfeito impossível!
-  Nada, pra variar, casado...
- Casado, solto no carnaval? Como soube?
- Quando perguntei negou, mas não me convenceu, marca de aliança no dedo.. Brincamos o tempo todo de parzinho, demos uns amassos . Coisa de carnaval, sem compromisso, não ia adiante mesmo, sabe como é...
- Sei.
- Aí na hora de ir embora, tava me despedindo, não é que se ofereceu pra me levar? Eu disse que tava com a titia e as meninas...
- E ele desistiu?
- Nada! Falou que levava todo mundo. Tinha carro, não custava. Aí eu não tive como recusar. No banheiro, a Lurdinha me deu força tipo "deixa de frescura, na sua idade, lavou tá novo..."
- Hahaha! Novo é exagero, né?
- Aí pegamos carona... E aconteceu o que eu temia, por mais que eu quisesse descer primeiro, ele fez um itinerário pra me deixar por último.
- Hum,  claro...
- Pois é, o Barney não era de desistir fácil, fiquei sem saber o que fazer,  e se fosse um cara sei lá, maluco...?
- É, todo cuidado é pouco.
-  Deixou todas em casa, elas se despediram apreensivas,a tia Rosa com cada olho, falando "me telefona", toda hora.!
- Natural.
- Aí  ele deu umas voltas por lugares meio desertos, procurando parar, ate´que reparei q estávamos sendo seguidos.
- Santa mãe! E aí?
- Aí eu disse "acho que estamos sendo seguidos".
- E ele...?
- Sorriu e disse que  era policial e andava com escolta.
- Vixe!
- E que estava jurado de morte.
- Mentira, pára, Rosilda!
- Espera! Tem mais. Senti umas coisas duras no chão do carro.
- E que coisas eram?
- Armas.
- Armas? Nossa!!
- Eram, ele acabou dizendo que precisava andar com elas...
- Eu ia ter um troço!
- Mas eu tive um troço! Vê se eu ia ficar rodando por aí com um cara cheio de arma no carro e escolta!
- É mesmo...
 - Me ocorreu uma ideia. Na hora que fui ao banheiro no clube, tirei o osso da fantasia e esqueci lá.
- Mas o que tem o osso?
- Foi a desculpa pra pedir que me levasse de volta ao clube pra buscar, entende? De lá eu fugiria dele, era mais fácil.
- E ele?
- Ficou chateado, disse "que importância tinha o raio de um osso que merecesse ir buscar"?
- E você?
- Eu disse que era um osso de família!
- Olha, Rosi, já vi tudo de família que você pode imaginar, menos um osso!
- Mandei que era osso de estimação de meu avô, uma fantasia de viking  de 1930.
- Ah tá.
-Estava com  medo do  manjado "dá ou desce"!
- E convenceu?
- Mais ou menos, mas ele acabou me levando até lá. Fiquei dando um tempo, procurando o osso. .Aí vi que ele, contrariado, foi embora, com uma arrancada brusca, o comboio atrás.  
- Que situação! E aí?
- Pior que  não achei o osso, é claro. 
- E você o que fez?
- Os empregados do clube estavam guardando as cadeiras sem entender nada do que  fazia ali aquela Pedrita sozinha,  sem osso. Eu perguntei por acaso "vocês viram um osso por aí?" pra justificar minha presença.
- Ninguém entendeu nada, né?
- Não. Eles se e me olharam com cara tipo "senhora, o carnaval já acabou". Peguei o celular e chamei o Jorge, meu taxista de emergência. Sorte que ele estava disponível.
-Que sorte!
- ufa  me livrei do  Barney-polícia ou bandido, sei lá!
- Graças a Deus, heim!
- E assim a Pedrita se salvou de um troglodita... Bendito osso!
- E como  se chamava afinal esse "Barney"?
- Como ele se chamava? Boa pergunta!
- Haha, nem sabe!
- Não faço ideia.
- Coisas do carnaval.
-Coisas de carnaval